Capitu traiu Bentinho?

Para entender se Capitu traiu ou não Bentinho, é importante conhecer os personagens da trama:

• Bentinho: narrador-personagem. Larga o seminário para estudar Direito em São Paulo. É o nosso protagonista, Dom Casmurro. Recebe esse nome devido a sua amargura e aos seus hábitos duros e reclusos. Inseguro e ciumento, o personagem vive perturbado por não saber ao certo de sua amiga de infância, e grande amor, o traiu com seu melhor amigo.
• Capitu: vizinha pobre por quem Bentinho se encanta ainda quando eram crianças. É sua amiga de infância, com quem se casa ao sair do seminário. Apesar das suas notórias força e coragem, Capitu é a famosa personagem literária dos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, dos “olhos ressaca”. Morre antes de revelar se as desconfianças do marido tinham fundamento.
• Escobar: grande amigo de Bentinho, o qual conhece no seminário. Vira um comerciante de sucesso. Apesar de ser exímio nadador, morre afogado. No seu enterro, enquanto sua esposa, Sancha, vela o marido morto, Capitu o olha com o mesmo pesar da viúva. A atitude não passa despercebida por Bentinho e aumenta a sua desconfiança.
• Ezequiel: filho de Capitu e Bentinho. Traz tantas características físicas e comportamentais do Escobar que Bentinho passa toda a história questionando a sua paternidade e rejeitando o filho. Ezequiel acaba morrendo sem reatar laços com Bentinho.

O livro Dom Casmurro começa com o seu narrador-personagem, o bem-sucedido, mas recluso, advogado, Bento de Albuquerque Santiago, o Bentinho, decidindo relembrar a sua juventude.

Ele passa a narrar desde a sua infância, onde conhece e apaixona-se por Capitu, que era sua vizinha. Relata a promessa de sua mãe, Dona Glória, de ordená-lo padre. No seminário, ele conhece Escobar, aquele que, ao mesmo tempo, seria seu melhor amigo e o causador de todo o seu ciúme e desconfiança.

Bentinho consegue se livrar do destino de ser padre e se casa com Capitu ao mesmo tempo que Escobar se casa com, Sancha, uma amiga de Capitu. Os dois casais passam a conviver com bastante frequência.

O livro é marcado por temas como amor, ciúme, caráter e traição. Quando Bentinho e Capitu enfim têm o seu primeiro filho, Ezequiel, o nosso narrador deixa aflorar todo o seu ciúme diante de tamanha semelhança entre a criança e o seu grande amigo. Bentinho passa a suspeitar de que Capitu o traia com Escobar.

Num momento de fúria, perturbado pelas semelhanças e pelo ciúme incontrolável, Bentinho tenta matar a criança, sendo interrompido por Capitu. O casal passa a ter diversas discussões e acaba se separando no exterior, para onde viajaram para escapar das especulações. Mesmo com a morte de Capitu, Bentinho segue questionando a sua paternidade, rejeita Ezequiel até a morte deste, ficando cada vez mais recluso e amargurado.

Capitu traiu?

Apesar do relato do narrador revelar claros indícios da traição de Capitu, por outro lado, Machado de Assis conclui a sua obra sem colocar um ponto final na dúvida que fica na cabeça de seus leitores. Afinal, pela narrativa da história só se tem o ponto de vista e a perspectiva de Bentinho, personagem que, desde a infância, apresenta o ciúme como uma das suas principais características. Ainda, em nenhum momento da obra, há alguma declaração de envolvimento entre os personagens de Capitu e Escobar.

A culpa ou a inocência de Capitu sempre foi assunto de dúvida e discussão literária. A escritora Lígia Fagundes Telles admitiu certa vez que a sua “leitura de Dom Casmurro mudou com o passar do tempo.”^[1] Quando leu o livro pela primeira vez, a escritora concluiu que Capitu era inocente. Já na maturidade quando relia a obra para uma adaptação do roteiro para a televisão, a sua visão já era outra e ela encontrava indícios da traição.

Seguem outros argumentos para afirmar que Capitu traiu Bentinho:

1. Enterro de Escobar

Durante o enterro do amigo, Bentinho repara na reação de Capitu. Ela demonstrava tristeza como se ela fosse a viúva, fato que corroborou com as desconfianças do narrador, conforme o próprio relata no trecho:

Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...

2. Semelhança entre Ezequiel e Escobar

Bentinho se perturbava diante da semelhança entre o seu filho com Capitu, Ezequiel, e o amigo Escobar. O menino seria a prova viva da traição.

Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porém, não confessou nada; repetiu as últimas palavras, puxou o filho e saíram para a missa.

3. Escobar na companhia de Capitu

Em alguns momentos da trama, Escobar ficava muito tempo com Capitu sem a presença de Bentinho. Como no episódio em que Bentinho , ao voltar de uma ópera na qual tinha ido só, pois Capitu não se sentia bem, encontra Escobar saindo de sua casa.

4. O afastamento de Dona Glória

Em determinado momento da trama, a mãe de Bentinho se distancia do neto, não querendo vê-lo mais, talvez por também desconfiar da paternidade e acreditar que o menino fosse fruto incontestável da traição. Esse argumento tira a unilateralidade da narrativa.

5. Argumento literário

Caso enxerguemos que Capitu era inocente, a trama passa de uma história de traição e adultério para uma história de ciúme. Contudo, Dom Casmurro é uma obra do Realismo. O tema adultério era um dos mais frequentes nos romances deste estilo literário, do qual Machado de Assis era um dos expoentes.

Capitu, apesar de não negar, em nenhum momento da trama, a semelhança entre Ezequiel e Escobar, tampouco dá indícios reais de que esteve com Escobar. Ainda, segundo o professor de literatura, Fernando Marinho, "Os acontecimentos que pautaram as desconfianças de Bentinho são ambíguos", sendo possível presumir que o narrador mal-interpretou alguns momentos que geraram as suas desconfianças^[2].

O filósofo Luiz Felipe Pondé^[3] corrobora com essa teoria e afirma que em momentos como o enterro de Escobar, um grande amigo do casal, aparecem sentimentos que você não percebe no cotidiano. E que as pessoas podem trair suas percepções em momentos de perda. “O nosso pensamento pode ser contaminado por experiências que vão muito além da nossa capacidade de discernimento”, diz. Para ele, história fica mais poderosa se Capitu não traiu Bentinho.

As obras literárias frequentemente retratam traições. Não necessariamente amorosas, mas também ideológicas, difamatórias, familiares. Veja alguns outros célebres exemplos de traições que se assemelham a da possível traição de Capitu a Bentinho:

• Otelo, de William Shakespeare: o ciumento general mouro Otelo mata sua esposa adúltera Desdêmona. Esta tragédia shakesperiana teria sido de grande influência para Machado de Assis escrever Dom Casmurro.
• Madame Bovary, de Gustave Flaubert: um casamento infeliz e a vida pacata no interior da França levam a protagonista a ter um caso extraconjugal. O autor chegou a ser processado por ofender a moral pública com a publicação deste livro.
• O amante de Lady Chatterley, de D.H. Lawrence: com um marido carinhoso, mas inválido por conta de ferimentos de guerra, Lady Chatterley acaba se apaixonando pelo guarda-caça da propriedade de seu marido. O livro, escrito em 1928, causou escândalo por suas cenas de sexo e só foi publicado em seu país de origem, o Reino Unido, em 1960.
• O primo Basílio, de Eça de Queiroz: a protagonista Luísa tem um caso com seu primo Basílio enquanto seu marido estava em uma viagem. Ela passa a ser chantageada pela governanta da casa.
• Anna Karenina, Liev Tolstói: insatisfeita com seu casamento, a protagonista Anna Karenina tem um caso com o conde Vrónsky. Ela chega a se separar do marido, mas a perda do seu status social e o afastamento dos filhos a levam ao desespero e a um fim trágico.

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